"Família
 é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um
 problema...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o 
imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir...Mas a vida... 
sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe
 a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito 
milagre, a família está servida. Fulana sai a mais inteligente de todas.
 Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, 
unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do 
tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que 
surpreendeu
 e foi
 morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais consistente...Já 
estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca 
mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará 
cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato 
que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de 
tristeza. Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do 
parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que 
quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao 
paladar, tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa. 
Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a mais disso ou 
daquilo e pronto: é um verdadeiro desastre. Família é prato extremamente
 sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido. Outra 
coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora 
que se decide meter a colher. Saber meter a
 colher é verdadeira arte. Uma grande amiga minha desandou a receita de 
toda a família, só porque meteu a colher na hora errada. O pior é que 
ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. 
Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, 
Família à Belle Meunière; Família ao Molho Pardo (em que o sangue é 
fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda da
 Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias 
doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que 
não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você 
suporta só para manter a linha. Seja como for, família é prato que deve 
ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável,
 impossível de se engolir. 
Enfim,
 receita de família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos
 poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente 
cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que 
ficou no pedaço de papel. Muita coisa se perde na lembrança. 
Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu. O que este 
veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que 
seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. 
Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão 
naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no 
barro. 
Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete." 
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